Delamar Corrêa Mirapalheta
Advogado, Radialista e Vereador. Natural de Rio Grande, nascido no Taim, foi vice-prefeito e prefeito do Município.
Como eu já esperava, o Blog do @lfaro marcou sua estréia com temas polêmicos. A enquete de abertura provoca os leitores sobre se votariam em candidato “ficha suja”. O resultado da pesquisa, nos primeiros três dias, registra que 79,3% “não votariam”; 10,3% “votariam” e 10,3% responderam que “depende”.
O debate sobre a inelegibilidade tornou-se mais vigoroso a partir da Constituição de 1988, mais particularmente da edição da Lei Complementar nº 64, de 1990. De lá para cá dezenas de projetos tramitam no Congresso Nacional visando produzir alterações na referida lei complementar. Nesse mesmo sentido, em 29 de setembro de 2009, vários deputados subscreveram o Projeto de Lei Complementar nº 518/2009, encampando dessa forma o Projeto de Lei de Iniciativa Popular, apoiado em 1,6 milhões de assinaturas colhidas em todo o país, que estabelece exigências mais rigorosas sobre a vida pregressa dos candidatos.
O Presidente da Câmara, Deputado Michel Temer, nomeou um grupo de trabalho formado por parlamentares para apresentar um substitutivo que amenizasse um pouco a proposta original, o que ocorreu no último dia 17 de março de 2010, com a presença de todas as entidades que patrocinaram as assinaturas populares referente ao projeto denominado “Ficha Limpa”.
Para melhor entendimento faz-se a seguir um demonstrativo entre os principais fatores de inelegibilidade constante na legislação vigente – LC nº 64/90, PLP nº 518/09 e seu Substitutivo.
COMPARAÇÃO ENTRE A LEI ATUAL E AS PRINCIPAIS PROPOSTAS DE ALTERAÇÃO |
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TEMA |
COMO É HOJE |
PLP 518/09 |
PLP 518/09 |
Eleições |
O condenado por abuso do poder econômico ou político na Justiça Eleitoral é inelegível somente se a ação estiver transitada em julgado. |
A ação não precisa ser transitada em julgado; basta à representação ser julgada procedente pela Justiça. |
O substitutivo torna inelegível quem for condenado por órgão colegiado e por conduta dolosa, ou seja, quando há intenção de violar a lei. |
Processo |
A condenação criminal também tem de ser transitada em julgado para provocar inelegibilidade. São sete casos previstos: crimes contra a econômia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, tráfico de entorpecentes e crimes eleitorais. |
Basta que a condenação seja em primeira ou única instância ou no caso de políticos com foro privilegiado que a denuncia seja recebida por um tribunal. Acrescenta outros crimes na lista, como racismo, tortura e abuso de autoridade. |
O substitutivo torna inelegível quem for condenado por órgão colegiado e por conduta dolosa, ou seja, quando há intenção de violar a lei. Acrescenta outros crimes. |
Abuso de Poder |
É inelegível quem tiver cargo na administração pública e beneficiar a si ou a terceiro, por abuso do poder econômico ou político, desde que condenado em ação transitada em julgado. |
Retira a necessidade de trânsito em julgado e aumenta o prazo de inelegibilidade para oito anos. |
OUTRAS MUDANÇAS PREVISTAS NO SUBSTITUTIVO AO PLP 518/09 |
O substitutivo do deputado Índio da Costa (DEM-RJ) ao projeto Ficha Limpa (PLP 518/09 e outros) amplia as hipóteses de inelegibilidade previstas na Lei Complementar 64/90 e impede a candidatura de políticos que renunciam para escapar de processos disciplinares por quebra de decoro parlamentar. |
O substitutivo do relator também suspende, pelo prazo de oito anos, o direito de disputar eleições para as pessoas enquadradas nos casos previstos no texto. O prazo será contado a partir da sentença ou do final do mandato da pessoa impedida. |
A proposta, segundo Índio da Costa, avançou ao incluir como impeditivos para a candidatura a condenação em crimes como o desmatamento da Amazônia ou a participação em milícias. Também ficará inelegível quem for condenado por manter trabalhadores em condição análoga de escravidão, entre outros crimes. |
Para barrar a candidatura, a condenação deverá ser imposta por órgão colegiado, independentemente da instância. No caso de condenação criminal, a candidatura só é vetada por atos dolosos, ou seja, com a intenção de violar a lei. Nesta última situação, há exceções como os crimes eleitorais. |
Só provocarão a inelegibilidade as ações penais públicas, ou seja, aquelas apresentadas pelo Ministério Público. A idéia é evitar a litigância de má-fé, nas quais as denúncias são apresentadas com o objetivo de prejudicar concorrentes em disputa eleitoral. |
O texto também define que o Ministério Público e a Justiça Eleitoral devem dar prioridade aos processos de abuso de autoridade ou de poder econômico sobre os demais, exceto habeas corpus e mandado de segurança. |
O substitutivo apresentado, embora longe da unanimidade, mostra-se razoável e por conseqüência em condições de ser votado pelo Plenário da Câmara. Contudo, não escapará a uma discussão sobre a sua constitucionalidade. O art. 15, inciso III da Constituição Federal veda a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos. O projeto “ficha limpa” retira essa exigência, colidindo frontalmente com o dispositivo constitucional. Nesse particular entrechocam-se posições hermenêuticas distintas, que precisam ser sopesadas por consistentes análises acadêmicas.
O art. 14, § 9º da Constituição Federal, segundo a exegese de respeitáveis juristas, não está subordinado ao art. 15 da mesma Constituição. Esse comando constitucional prevê que a Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a normalidade para o exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
Dirão esses hermeneutas que em nome do chamado princípio da unidade da Constituição, quando há uma aparente antinomia, impõe-se buscar uma interpretação que as compatibilize e é isso que visa o projeto “ficha limpa”, que a mídia nacional popularizou como “ficha suja”. Em outras palavras, o substitutivo apresentado ao dispor sobre as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade, segundo essa corrente, nada mais fez do que proteger alguns bens jurídicos ali expressamente consignados, dentre os quais a moralidade, a probidade e a boa vida pregressa dos candidatos a cargos públicos. Mais ainda, de que cabe ao legislador infraconstitucional dizer qual é a densidade e concretude desses conceitos jurídicos.
Concordo, porém não integralmente. A calibragem do alcance da Lei Complementar não é uma opção política do legislador ordinário. Ela não pode pura e simplesmente desconhecer a exigência do trânsito em julgado da condenação, sob pena de subversão a Constituição Federal.
Na discussão de mérito, o projeto “ficha limpa” também merece alguma censura. A observância dos princípios republicanos só é exigida dos políticos. No caso do substitutivo ao projeto “ficha limpa”, a inelegibilidade não alcança juízes e promotores que não tenham boa vida pregressa. A punição aplicada a esses agentes públicos é a aposentadoria compulsória, pena máxima admitida pelo nosso sistema constitucional. A rigor não estariam pelas regras propostas impedidos de serem candidatos, ainda que declarados indignos de exercerem a Magistratura e o Ministério Público. Trata-se de uma brutal contradição
Há outro fato que merece ser destacado. Nos escândalos envolvendo os agentes públicos e políticos, as atenções voltam-se apenas para estes, como se não houvesse parceiros privados, pessoas físicas e jurídicas, sem as quais não seria possível a perpetração dos atos ilícitos. Tenho como insofismável que a inelegibilidade deve alcançar os corruptos e os corruptores, o que não ocorre em relação a esses últimos, como se infere do substitutivo apresentado.
A seleção de candidatos “cândidos” implica olhar a “ficha Limpa” ou “suja”, como preferem alguns, sem distinção e com o mesmo rigor, sejam eles políticos, empresários, servidores públicos ou cidadãos comuns. Se não for assim correremos o risco de substituir político “ficha suja”, por empresário sonegador de impostos, servidor público corrupto e cidadão desonesto.
Tiritapes e cachimús são dois animais imaginários, cujos biótipos , diferentemente do que ocorre com os demais seres, não formam um conjunto de características fundamentais comuns ou semelhantes de uma série de indivíduos. Do ponto de vista da biotipologia não há como estudá-los, posto que não revelam constituição, temperamentos e caracteres próprios.
A psiquiatria e a psicologia, enquanto ciências que buscam compreender o homem, seu comportamento, podem ajudar-nos na racionalização de fatores subjetivos capazes de diferenciá-los. Entretanto, sem embargo as valiosas contribuições destas ciências, penso seja mais adequado buscar na filosofia o sentido moral da dualidade entre ambos.
Antes de qualquer ensaio a respeito, impõe-se uma ligeira e despretensiosa abordagem sobre a interação entre a psicologia e a filosofia. Em verdade, a história de ambas confundem-se, pelo menos até o seu rompimento, cujo marco posiciona-se entre 1596/1650. Durante séculos a psicologia ocupou-se do estudo da alma. Nesse período predominava a idéia que todo o ser humano possuía uma contraparte imaterial do corpo, de onde provinham os processos psíquicos, dos quais o cérebro seria apenas o mediador. Coube ao filósofo francês René Descartes, responsável pela teoria do dualismo psicofísico – distinção entre corpo e mente, a ruptura desse conceito. Daí para frente à filosofia e a psicologia orientaram os seus estudos psíquicos de forma diferenciada. Os filósofos entendiam ser possível uma ciência do psiquismo alicerçada numa dialética abstrata, sem conseqüência prática, nem possibilidade de descobertas autênticas. Os psicólogos por seu turno, valendo-se de método experimental, consolidaram a psicologia como uma ciência com campo próprio de estudo, ainda que se possa discutir qual seja exatamente esse campo.
A essa altura já são claras as razões pelas quais optamos por submeter os tiritapes e cachimús ao esquadrinhamento da filosofia. É menos exigente com o formalismo e a comprovação de teorias fundamentalmente dialéticas.
Os nossos personagens, como já descritos, pertencem ao imaginário. Logo, podem simbolizar o bem e o mal, a verdade e a mentira, o certo e o errado, ou ainda qualquer outro antagonismo que a mente humana for capaz de conceber. Embora possamos convencionar que os tiritapes encarnem os aspectos negativos e os cachimús os positivos, resta-nos a dificuldade de distingui-los. Não possuem características próprias, são resultantes de processos mentais sem qualquer estimulação do mundo exterior, segundo alguns base de todo o conhecimento humano. Assim, com freqüência, estamos sujeitos a sermos enganados por tiritapes fazendo-se passar por cachimús.
Sem garantias de eliminar os riscos do engano, convém examinar o contraponto da filosofia empirista, que enfatiza os papéis da memória e das associações mentais, para justificar a base sensorial do conhecimento. Os racionalistas alemães não concordavam, absolutamente, com os empiristas. Asseguram que a mente tem o poder de gerar idéias, independentemente da estimulação sensorial. Todo o conhecimento se basearia, desta forma, na razão, e a percepção seria um processo seletivo. Essa controvérsia até hoje não foi resolvida.
Não temos simpatia com o reducionismo da mente defendido pelos empiristas. Preferimos o racionalismo que acredita ser a atividade mental muito mais complexa e que se os conceitos ou a percepção dos objetos fossem reduzidos a elementos perderiam o seu conteúdo verdadeiro. De fato, tiritapes e cachimús não raro comportam-se de forma idêntica, contudo por razões diversas. Assim, a menos que busquemos conhecê-las jamais teremos a oportunidade de distingui-los.
A política, base do relacionamento humano, é o habitat natural dos nossos personagens. A sobrevivência e ascensão dos tiritapes nesse universo não se pauta por regras éticas, ao contrário, seguem prazerosamente à LEI DA MASSA, porque preferem eximirem-se de responsabilidades. São inautênticos, sabem aquilo que a massa sabe, divertem-se como se diverte a massa, julgam como julga a massa; tudo está decidido. Os que fazem prevalecer a razão não se deixam enganar por esses comportamentos, bem como não abdicam do direito de construir as suas existências em detrimento de verdades alheias. A humanidade coletivamente não tem julgado com acerto. Preferiu Barrabás a Jesus; queimou viva Joana D’arc .
Platão formulou um pensamento filosófico a que denominou simbolicamente de “a segunda navegação”. Em síntese, defendia que por meio desta era possível obter-se o conhecimento de dois níveis ou planos de um ser: um, fenomênico e visível; outro, invisível e metafenomênico, inteligível e compreensível pela razão. Melhor explicando, um cálculo matemático realizado pelo computador não pode ser atribuído exclusivamente ao hardware, parte visível, mas sobretudo ao softwore, parte invisível. Como se vê, o material, palpável, apenas exterioriza no plano físico as concausas, ou seja, causas a serviços da inteligência humana.
A sabedoria popular consagrou o provérbio de que “nem tudo que reluz é ouro”. Só o exame racional do indivíduo é capaz de revelar a sua verdadeira face. Se a retórica não corresponde ao seu modo de vida; se renuncia as suas próprias possibilidades de vir a ser para tornar-se um clone da biografia de outro, não passa de um tiritape travestido de cachimús.
No célebre “Mito da Caverna” o filósofo Platão nos dá uma idéia magnífica sobre a questão da ordem implícita e explícita. Vejamos o que nos diz: “ Imaginemos homens que vivam numa caverna cuja entrada se abre para a luz em toda a sua largura, com um amplo saguão de acesso. Imaginemos que esta caverna seja habitada, e seus habitantes tenham as pernas e o pescoço amarrados de tal modo que não possam mudar de posição e tenham de olhar apenas para o fundo da caverna, onde há uma parede. Imaginemos ainda que, bem em frente da entrada da caverna, exista um pequeno muro da altura de um homem e que, por trás desse muro, se movam homens carregando sobre os ombros estátuas trabalhadas em pedra e madeira, representando os mais diversos tipos de coisas. Imaginemos também que, por lá, no alto, brilhe o sol. Finalmente, imaginemos que a caverna produza ecos e que os homens que passam por trás do muro estejam falando de modo que suas vozes ecoem no fundo da caverna. Se fosse assim, certamente os habitantes da caverna nada poderiam ver além das sombras das pequenas estátuas projetadas no fundo da caverna e ouviriam apenas o eco das vozes. Entretanto, por nunca terem visto outra coisa, eles acreditariam que aquelas sombras, que eram cópias imperfeitas de objetos reais, eram a única e verdadeira realidade e que o eco das vozes seriam o som real das vozes emitidas pelas sombras. Suponhamos, agora, que um daqueles habitantes consiga se soltar das correntes que o prendem. Com muita dificuldade e sentindo-se freqüentemente tonto, ele se voltaria para a luz e começaria a subir até a entrada da caverna. Com muita dificuldade e sentindo-se perdido, ele começaria a se habituar à nova visão com a qual se deparava. Habituando os olhos e os ouvidos, ele veria as estatuetas moverem-se por sobre o muro e, após formular inúmera hipóteses, por fim compreenderia que elas possuem mais detalhes e são muito mais belas que as sombras que antes via na caverna, e que agora lhes parece algo irreal ou limitado. Suponhamos que alguém o traga para o outro lado do muro. Primeiramente ele ficaria ofuscado e amedrontado pelo excesso de luz; depois, habituando-se, veria as várias coisas em si mesmas; e, por último, veria a própria luz do sol refletida em todas as coisas. Compreenderia, então, que estas e somente estas coisas seriam a realidade e que o sol seria a causa de todas as outras coisas. Mas ele se entristeceria se seus companheiros da caverna ficassem ainda em sua obscura ignorância acerca das causas últimas das coisas. Assim, ele, por amor, voltaria à caverna a fim de libertar seus irmãos do julgo da ignorância e dos grilhões que os prendiam. Mas, quando volta, ele é recebido como um louco que não reconhece ou não mais se adapta à realidade que eles pensam ser a verdadeira: a realidade das sombras. E, então,eles o desprezariam....”.
Os cachimús precisam continuar combatendo os tiritapes, mesmo correndo o risco de serem tachados de loucos, para que todos saibam que não passam de sombras; de oportunistas que nada tendo para mostrar apropriam-se do trabalho alheio.
Alberto Amaral Alfaro
natural de Rio Grande – RS, advogado, empresário, corretor de imóveis, radialista e blogueiro.