Papai antes de ir à cidade me mandou limpar a cantina. As cambonas, tarros, calhas, embocadoras, lampiões e os sacos de feijão, farinha, arroz, milho....
Tudo ali era opaco e só ilustrado com uma velha caiação.
Comecei por cima removendo o pó, poeira da carreteira nas proximidades.
A cantina antiga de secos e molhados na campanha as margens do arroio do Marmeleiro. Papai herdou quando o Nicanor morreu de velho. Tinha um aroma impreguinado nas paredes de extrato de café, erva-mate, gajeta, vinho, queijos e tantas mercadorias vendidas a granel.
O balcão alto de pedra, balança de peso, prateleira de madeira, bancos de toco, porta com tranca, janelas com tramela. Iluminado com luz elétrica que papai mandou instalar no mês passado. Essa novidade favorecia o carteado: praticado por uma dúzia de desocupados que entram noite adentro, fumando, gritando, escarrando e imundiciando tudo com cascas, peles e tampas. De ovos, mortadelas e cerveja, sem falar das centenas de besouros, baratões, cascudos mortos... Que se aglomeram das lâmpadas e amanhecem no chão. Na frente há um puxado de palha com piso de terra e um amarrador de cavalos, uma grande figueira, mais adiante a porteira de paus alto uma placa com o nome do estabelecimento ?Cantina do Nicanor?.
Eu conheci o velho Nicanor, magro, alto, com seus cabelos brancos, bigodão, dente de ouro. Arrastando as tamancas, bombacha desabotoada, camisa de pelúcia desbotada e um falar castelhano.. Quando ele morreu no velório, seus amigos passaram a noite bebendo, no enterro regaram o caixão com cachaça e jogaram as garrafas na cova.
Pra dizer: naquela segunda-feira, eu não completei o serviço, quando varria de repente vi uma enorme víbora entre as sacarias.
Fui criado no campo, aprendi cedo toda a lida. Métodos de colono, estilos de gaúcho e os meios de sobrevivências em caso de frio, fome, febre, sono e de guerra.
Treinado para a seca, enchente, ventania, calor e escassez se houvesse.
Dominava a enxada, o arado e as armas se necessário: facas, armadilhas, boleadeiras e a língua para a submissão.
Sabia como saltar a cavalo em pelo sem freio e deitar o cabelo, desertando. No caso de uma revolução, atacar o inimigo as traição: soltar a cavalhada durante a noite, sabotar a cantina, salgar o churrasco, atear fogo no paiol da munição. No corpo a corpo somente com uma prenda “lindassa”, num caso de amor.
Cavalos, a arma principal, dominavam com precisão. Com eles conversava, com os braços emitia ordens.
Meu pai domava sob encomenda todo mês. Cavalos selvagens eram polidos e ensinados ao convívio com humanos e eu me divertia vendo os baguais se curvarem a doma racional sem brutalidades.
- Chega. A história que me proponho é outra!
Na minha Terra as tradições são levadas a sério, nos CTGs, MTGs nas escolas, no campo...
Na cidade no dia vinte de setembro do ano 1970, eu estava lá, quando na Rua Barão do Rio Branco, uma multidão assistia o desfile dos gaúchos.
Dois grupos de cavalariano teatravam a defesa da “Ponta da Azelha”, pela ocasião da tomada de Porto Alegre em 1835, pelo “Farrapo” Gomes Jardim. Deflagrando a Revolução Farroupilha.
Pela faixa cimentada, um miliciano de uniforme militar e um fuzil baionado ilustrativo, montado num cavalo investiam a toda disparada, imitando a façanha de outrora.
Há meu ver: o miliciano estava fora de controle em sua máquina quadrúpede e pensei:
- Meu Deus! O cavalo disparou com o milico! Vai saltar em cima das pessoas! Bah!
Entrei na faixa limpa, margeada de pessoas, ergui os braços e numa postura de “Moisés ao abrir as águas do mar Vermelho”, gritei com o animal numa maneira que só nos dois entendíamos. E esbarrou na minha frente, o segurei pelo buxal o contendo repentinamente.
O miliciano postado no lombo do bucéfalo de olhos arregalados gritou comigo:
- Solta! Solta! Tenho uma missão!
O cavalo empinou, saiu de lado, rodou em torno... E eu olhando pro chão num gesto hipnótico, o acalmei.
O miliciano do Governo Provinciano (de faz de conta) desceu me meteu o rebenque nas costas, dizendo a toda guéla:
- Larga! Larga seu merda ou te meto a baioneta!
- Larguei. E ele não conseguiu montar novamente.
Tchê! Enquanto isso o exército dos farrapos gritavam erguendo dezenas de lanças de bambu embandeiradas, com isopor imitando ponta. Na “ponte alegórica” em plena via pública, super lotada.
O povo aplaudiu, gritou, assoviou pra caramba e eu na época sem entender nada, sumi na multidão.
Alberto Amaral Alfaro
natural de Rio Grande – RS, advogado, empresário, corretor de imóveis, radialista e blogueiro.