Paulo Francisco Martins Pacheco é Advogado, Cirurgião Buco-Facial, Coronel da Reserva BM, Prof. De Ciência Política da FURG - com Pós-Graduação pela Univ. Mackenzie – SP, Escritor – Membro da Academia Pelotense de Letras.
“Súbita ao luar me apareces dançante,
movendo-te lentamente na luz que ba-
te em cheio na tua fachada desfeita”
Carlos Lacerda
DESCOMPROMISSADO, qual um forasteiro, visito o Clube Comercial de Pelotas. Observador sem preconceitos e sem passado no Clube, natural esperar que sua configuração não produza em mim qualquer efeito emotivo. Contemplo, primacialmente, sua forma arquitetônica e as obras de arte que abriga. Porém, sem demora, começo a divagar. Assalta-me o vão desejo de desencobrir o que escondem suas paredes. Devo ao “cheiro”, que rivaliza com a música em poder evocativo, o conduzir-me de torna-viagem ao Clube Comercial de Santana do Livramento.
Vivo então, plenamente vivo, o apogeu dos anos dourados. Imagino os pontos de intersecção de ambos no tempo, máxime, quando no frenesi de retumbantes réveillons. Sigo pela escada atapetada em vermelho e assumo uma postura reverencial, talvez por senti-la cúmplice de segredos guardados: sabê-la passagem, passadiço, passarela aonde desembocavam sonhos realizados ou fiapos de amores desfeitos. Contemplo os amplos salões e seus machucados encantos. Pressinto remanescer uma cilada de amor em cada canto.
Prossigo, tateando o meu pensar por salas escuras e quietas, para me deter junto ao álbum de fotografias. Uma delas tem o condão de libertar minhas emoções, faz renascer, com agitação ruidosa, o salão tumultuário de outrora. Vejo um começo de baile. É começo de baile certamente, pois não se percebe, à luz intensa dos candelabros, uma só fisionomia fatigada. O ritmo é, ou estava sendo alucinante. Parece que houve uma pausa, enquanto a orquestra Cassino de Sevilha executava Tequila. Percebe-se a interrupção efêmera, porque os vestidos revoluteiam – ainda não totalmente regressados às saias de armação.
As faces!... As faces estampam e aprisionam uma felicidade sem limites. Este aprisionamento, impeditivo da finitude do belo, confere singular prodígio ao instante retratado. Para onde se recolheram os passos ritmados, após a pausa, logo-logo e muitas vezes retomados? Em que regiões excelsas fazem-se ouvir as melodias daquelas vozes? Qual o paradeiro definitivo desses entes que demonstram tanto acreditar na vida?
Era um tempo inconciliável com o apelo lascivo e grosseiro de nossos dias. Nenhuma moça, por mais “avançada” que fosse, dar-se-ia ao despudor de executar a execrável sucessão rítmica da “dança da garrafa”, menos ainda, `a impudência de se entregar ao “nobre” sentimento humano suscitado pelos versos: “Um tapinha não dói” e “Martelando com o martelão”... Verdade que também dançávamos à meia luz de lâmpadas indiretas, sob o efeito do álcool e de perfumes afrodisíacos, contudo, não violávamos o Código Penal. É que, as mensagens contidas em As rosas não falam, Besa-me mucho e La Barca, conduziam-nos à mansuetude, ao amor sentimento, a íntimos enlevos.
Mas quem disse que sou um forasteiro neste recinto? O Clube, já o “sentira”, agora lembro, nos relatos de seu mais apaixonado habitué: doutor Luiz Carlos Centeno, há 20 anos falecido. Sim, ocorreu uma pausa, talvez uma cessação da realidade, naquele baile que o amigo vivenciou... Ou terá sido um agourento silêncio, precursor do silêncio definitivo?
O acaso, este croupier estrábico, propiciou-me revisitar o amigo justamente em seu Shangri-lá e num momento de extrema exaltação. Por tudo isso, deixar cair este patrimônio, permitir que seus encantos – “relíquias de casa velha” – se deteriorem é, no mínimo, descompreendê-lo. Imperioso conceder-lhe um novo início, torná-lo receptivo como antes, para que as explosões de entusiasmo voltem a aquecê-lo, o fulgor dos olhares a iluminá-lo e as emoções se renovem, como ondas, através das novas gerações.
Do livro Amados Fantasmas – crônicas que agudizaram – de Paulo F. M. Pacheco
Encontrei exposta, no museu de Santiago, carta do embaixador chileno, no Canadá. Datava do último quartel do séc. XIX, confessando, o diplomata, que a invenção do telégrafo sem fio tornara dispensáveis as embaixadas. Desnecessário recapitular, seqüencialmente, o vertiginoso avanço das comunicações, a confirmar, incisivamente, a assertiva anterior.
Infenso a modismos, imune às psicoses coletivas, só cogitei aderir à Internet, quando advertido por uma colega: “Como? Não tens e-mail? Pois estás fora do mundo!” Desde então o cerco foi se fechando e, relegado à condição de analfabeto técnico, acabei por me integrar.
Com receio de pagar vexame numa turma de jovens, contratei afoita instrutora, que passou a executar operações incríveis, atalhos impertinentes, sem me explicar o porquê de cada passo. Em sendo assim, pedi que me ensinasse apenas manobras essenciais e perseguindo sempre o mesmo caminho. Após uma semana, recém brevetado, “cidadão do mundo”, ensaiei meu primeiro vôo sem a instrutora. Mas tive a infelicidade de ANEXAR uma bagaceira mensagem à freira-chefe do bloco cirúrgico, cuja, se benze cada vez que me vê; enquanto contemplava o alemão Tochtrop, o mais devasso dos meus amigos, com um casto texto do padre Nivaldo Monte.
Se viver é perigoso, como sentenciou Guimarães Rosa, meter-se à internauta me pareceu uma missão tão temerária quanto a das antigas navegações cabralinas. Ocorre que os homens de raciocínio rápido, por isso mesmo inconseqüentes – os “avoados”, como dizia minha avó- depois de ganharem embalo acabam rompendo todos os diques do bom senso. O ideal seria que pensassem, pensassem como dizer e só então dissessem.
Como os professores costumam ter a palavra tão fácil que não conseguem guardá-la, padeci, recentemente, duas merecidas admoestações. A primeira foi de um amigo reencontrado depois de 40 anos; a segunda, de um parente. A Internet é um perigo, volvo a dizer. Entrincheirados na barricada, relaxamos os controles do superego e, uma vez, acionado o estopim “enviar”, exaure-se toda a possibilidade de uma contra-ordem. Passamos da consciência à inconsciência, berço, como se sabe, de idéias confusas e nos entregamos a digitar mal com grande facilidade.
A recente história das comunicações é extreme em mensagens desastrosas, pois nossa maior preocupação direciona-se a evitar a rapinagem nas contas bancárias. Adicione-se ainda, o fator distância, a nos tornar menos sensíveis à epiderme dos outros.
A mesma amiga que me levou a ingressar no sistema, veio em meu socorro: “Se continuares a filosofar assim, vais ficar conhecido como um baita chato triste; evita enveredar pelos caminhos labirínticos da abstração”. Ora, como se vê, as belas loiras, surpreendentemente, também filosofam. Excluídas as finalidades indispensáveis: pesquisa, relações comerciais, contato com familiares no exterior, tal tipo de comunicação, se compulsiva e frenética, muito me preocupa - como de começo expus. Bate papo? Pressinto que não é a mesma coisa, pois falta o olho no olho, a inflexão da voz, a convicção íntima, a mímica facial, sobretudo esta, a dizer e a redizer que estamos apenas brincando. Ademais, as palavras nem sempre revelam nosso verdadeiro estado de alma.
Com o telegrama era diferente; tínhamos de andar até o Correio e, nesta milenar luta do homem pela expressão, nada é mais favorável ao raciocínio, a corrigir desvios, do que uma caminhada lenta, introspectiva e cuidadosa.
Por tudo isso, prefiro o telegrama, porque censor antecipado de arroubos irrefletidos, porque pioneiro em desaconselhar a instalação de onerosas voluptuárias embaixadas, já que, sóbrios consulados bastam, como extensão soberana de nosso território.
Alberto Amaral Alfaro
natural de Rio Grande – RS, advogado, empresário, corretor de imóveis, radialista e blogueiro.